Não penso, logo relincho. Um glossário com
os 15 principais clichês repetidos pelas redes sociais para justificar,
no discurso, um mundo de violência e exclusão
Matheus Pichonelli, CartaCapital
Dizem que uma mentira repetida à exaustão se transforma em verdade.
Pura mentira. Uma mentira repetida à exaustão é só uma mentira, que
descamba para o clichê, que descamba para o discurso.
E o discurso,
quando mal calibrado, é o terreno para legitimar ofensas, preconceitos,
perseguições e exclusões ao longo da História. Nem sempre é resultado da
má-fé. Por estranho que pareça, é na maioria das vezes fruto da
indigência mental – uma indigência mental que assola as escolas, a
imprensa, as tribunas, as mesas de bares, as redes sociais.
Com os anos,
a liberdade dos leitores para se manifestar sobre qualquer assunto e o
exercício de moderação de comentários nos levam a reconhecer um clichê
pelo cheiro.
Listamos alguns deles abaixo com um apelo humanitário: ao
replicar, você não está sendo original; está apenas repetindo uma
fórmula pronta sem precisar pensar sobre tema algum. E um clichê
repetido à exaustão, vale lembrar, não é debate. É apenas relincho*.
“Negros têm preconceitos contra eles mesmos”
Tentativa clássica de terceirizar o próprio racismo, é a frase mais
falada das redes sociais durante o Dia da Consciência Negra. É propagada
justamente por quem mais precisa colocar a mão na consciência em datas
como esta: pessoas que nunca tomaram enquadro na rua nem foram
preteridas em entrevistas de emprego sem motivos aparentes.
O discurso é
recorrente na boca de quem jamais se questionou por que a maioria da
população brasileira não circula em ambientes frequentados pela elite
financeira e intelectual do País, como universidades, centros culturais,
restaurantes, shows e centros de compra. Tem a sua variação homofóbica
aplicada durante a Parada Gay. O sujeito tende a imaginar que Dia Branco
e Dia Hétero são equivalentes porque ignora os processos históricos de
dominação e exclusão de seu próprio país.
“Não precisamos de consciência preta, parda ou branca. Precisamos de consciência humana”
Eis uma verdade fatiada que deixa algumas perguntas no contrapé: o
manifestante a exigir direitos iguais não é gente? O que mais se busca,
nessas datas, se não a consciência humana? Ou ela seria necessária, com
ou sem feriado, caso a cor da pele (ou o gênero ou a sexualidade) não
fosse, ainda hoje, fatores de exclusão e agressão? (leia mais aqui sobre Consciência Humana)
“Héteros morrem mais do que homossexuais. Portanto, somos mais vulneráveis”
É o mesmo que medir o volume de um açude com uma
régua escolar. Crimes como homicídio, latrocínio, roubo ou furto têm
causas diversas: rouba-se ou mata-se por uma carteira, por ciúmes, por
fome, por motivo fútil, por futebol, mas não necessariamente por causa
da orientação sexual da vítima.
O argumento é utilizado por quem nunca
se perguntou por que ninguém acorda em um belo dia e decide estourar uma
barra de ferro na cabeça de alguém só porque este alguém gosta e anda
de mãos dadas com alguém do sexo oposto. O crime motivado por ódio
contra heterossexuais é tão plausível quanto ser engolido por uma
jaguatirica em plena Avenida Paulista.
“Estamos criando uma ditadura gay (ou racial) no Brasil. O que essas pessoas querem é privilégio”
Frase utilizada por quem jamais imaginou a seguinte cena: o sujeito
acorda, vê na tevê sempre os mesmos apresentadores, sempre as mesmas
pautas, sempre as mesmas gracinhas. No caminho do trabalho, ouve ofensas
de pedestres, motoristas e para constantemente em uma mesma blitz que
em tese serviria para todos. Mostra documento, RG. Ouve risada às suas
costas.
Precisa o tempo todo provar que trabalha e paga imposto (além, é
claro, de trabalhar e pagar imposto). Chega ao trabalho e é recebido
com deferência: “oi boneca”; “oi negão”; “veio sem camisa hoje?”.
Quando
joga futebol, vê a torcida imitando um macaco, jogando bananas ao
campo, ou imitando gazelas. E engasga toda vez que vira as costas e se
descobre alvo de algum comentário. Um dia diz: “apenas parem”. E ouve
como resposta que ele tem preconceito contra a própria condição ou está
em busca de privilégio. Resultado: precisamos de um novo glossário sobre
privilégios.
“A mulher deve se dar o valor”
Repetida tanto por homens como por mulheres, é a
confissão do recalque, em um caso, e da incompetência, no outro: o homem
recorre ao mantra para terceirizar a culpa de não controlar seus
próprios instintos; a mulher, por pura assimilação dos mandamentos do
pai, do marido e dos irmãos.
Nos dois casos o interlocutor acredita que,
ao não se dar o valor, a menina assume por sua conta e risco toda e
qualquer violência contra sua pretensão. Para se vestir como quer, andar
como quer, dizer e fazer o que quer com quem bem quiser, ouvirá, na
melhor das hipóteses, que não é a moça certa para casar; na pior, que
foi ela quem provocou a agressão.
“Os homens também precisam ser protegidos da violência feminina”
Na Lua, é possível que a violência entre gêneros seja equivalente. Na
Terra, ainda está para aparecer o homem que apanhou em casa porque foi
chamado de gostoso na rua, levou mão na bunda, ouviu assobios ou ruídos
com a língua sem pedir a opinião da mulher.
Também não há relevância
estatística para os homens que tiveram os corpos rasgados e invadidos
por grupos de mulheres que dominam as delegacias do País e minimizam os
crimes ao perguntar: “Quem mandou tirar a camisa?”.
“Se ela se deixou ser filmada, é porque quis se exibir”.
Verdade. Mas não leva em conta um detalhe: existe alguém do outro
lado da tela, ou da câmera. Este alguém tem um colchão de conforto a seu
favor. Se um dia o vídeo vazar, será carregado nos braços como comedor.
Ela, enquanto isso, vai ser sempre a exibida. A puta. A idiota que
deixou ser flagrada. A vergonha da família. A piada na escola. Parece
uma relação bastante equilibrada, não?
“O humor politicamente correto é sacal”
É a mais pura verdade em um mundo no qual o
politicamente incorreto serve para manter as posições originais: ricos
rindo de pobres, paulistas ridicularizando nordestinos, brancos ricos
fazendo troça de mulatos pobres, machões buscando graça na
vulnerabilidade de gays e mulheres.
As provocações são brincadeiras
saudáveis à medida que a plateia não se identifica com elas: a graça de
uma piada sobre português é proporcional à distância do primeiro
português daquele salão. Via de regra, a frase é usada por quem jura se
ofender quando chamado de girafa branca tanto quanto um negro ao ser
chamado de macaco. Só não vale perguntar se o interlocutor já foi
chamado de “elemento suspeito”, com tapas e humilhações, pelo simples
fato de ser alto como o artiodátilo.
“Bolsa Família incentiva a vagabundagem. Pegar na enxada e trabalhar ninguém quer”
Há duas origens para a sentença. Uma advém da bronca – manifestada,
ironicamente, por quem jamais pegou em enxada – por não se encontrar
hoje em dia uma boa empregada doméstica pelo mesmo preço e a mesma
facilidade. A outra origem é da turma do “pegar o jornal e ler além do
horóscopo ninguém quer”; se quisesse, o autor da frase saberia que o
Bolsa Empreiteiro (que também dispensa a enxada) consome muito mais o
orçamento público do que programa de transferência de renda.
Ou que a
maioria dos beneficiários de Bolsa Família não só trabalha como é
obrigada a vacinar os filhos, manter a regularidade na escola e
atravessar as portas de saída do programa. Mas a ojeriza sobre números e
fatos é a mesma que consagrou a enxada como símbolo do nojo ao
trabalho.
“Na ditadura as coisas funcionavam”
Frase geralmente acolhida por pacientes com síndrome de Estocolmo.
Entre 1964 e 1985, a economia nacional crescia para poucos, às custas de
endividamento externo e da subserviência a Washington; universalização
do ensino e da saúde era piada pronta, ninguém podia escolher os seus
representantes, a imprensa não podia criticar os generais e a sensação
de segurança e honestidade era construída à base da omissão porque
ninguém investigava ninguém.
Em todo caso, qualquer desvio identificado
era prontamente ofuscado com receitas de bolo na primeira página (os
bolos eram de fato melhores).
“Você defende direito de presos porque ele não agrediu ninguém da sua família”.
É o sofisma usado geralmente contra quem defende o uso das leis para
que a lei seja garantida. Para o sujeito, aplicação de penas e
encarceramentos são privilégios bancados às custas dele, o contribuinte.
Em sua lógica, o Estado só seria efetivo se garantisse a sua segurança e
instituísse a vingança como base constitucional. Assim, a eventual
agressão contra um integrante de uma família seria compensada com a
agressão a um integrante da família do acusado.
O acúmulo de
experiência, aperfeiçoamento de leis e instituições, para ele, são papo
de intelectual: bons eram os tempos dos linchamentos, dos apedrejamentos
públicos, da Lei de Talião. Falta perguntar se o defensor do
fuzilamento está disposto a dar a cara a tapa, ou a tiro, quando o filho
dirigir bêbado, atropelar, agredir e violentar a família de quem, como
ele, defende penas mais duras para crimes inafiançáveis.
“A criminalidade só vai diminuir quando tiver pena de morte no Brasil”
Frase repetida por quem admira o modelo prisional e o
corredor da morte dos EUA, o país mais rico do mundo e ao mesmo tempo o
mais violento entre as nações desenvolvidas. Lá o crime pode não
compensar (em algum lugar compensa?), mas está longe de ser varrido
junto com seus meliantes.
“Político deveria ser tratado por médico cubano”
Tradução: “não gosto de política nem de cubano”.
Pelo raciocínio, todo paciente tratado por cubanos VAI morrer e todo
político que precisa de tratamento médico DEVE morrer. Para o autor da
frase, bons eram os tempos em que, na falta de médico brasileiro,
deixava-se o paciente morrer – ou quando as leis eram criadas não pelo
Legislativo, mas pelo humor de quem governa na canetada.
“Deveriam fazer testes de medicamento em presidiários, não em animais”
Também conhecida como “não aprendemos nada com a parábola do filho
Pródigo que tantas vezes rezamos na catequese”. É citada por quem não
aceita tratamento desumano contra os bichos, mas não liga para o
tratamento desumano contra humanos. É repetida também por quem se
imagina livre de todo pecado e das grandes ironias da vida, como um
certo fiscal da prefeitura de São Paulo que um certo dia criticou o
direito ao indulto de presidiários e, no outro, estava preso acusado de
participação na máfia do ISS. É como dizem: teste de laboratório na cela
dos outros é refresco.
“Por que você não vai para Cuba?”
Também conhecida como “acabou meu estoque de argumentos. Estou andando na banguela”.
MATHEUS PICHONELLI