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Em um dos livros,
conta-se a história de José Xavier Cortez, que, expulso da Marinha por ter
participado da rebelião, mudou-se para São Paulo e começou a trabalhar e morar
em um estacionamento perto da PUC. De lavador de carros a estudante bolsista
naquela universidade, foi uma questão de tempo. Anos mais tarde, Cortez
lançaria uma editora que leva seu sobrenome |
“No momento em que a Comissão da Verdade
completa um ano, o Arquivo Nacional lança três livros que tratam do período da
ditadura
Xandra Stefane,
RBA / Revista do Brasil
“Só a memória costura tudo.” A frase, de Caio
Fernando Abreu, nos desperta para a dimensão da memória. Esta nos dá sentido,
enquanto indivíduos e enquanto grupo. Costura o que fomos, o que somos, o
espaço e o tempo em que vivemos. Através dela nos reconhecemos, nos
reinventamos; é a referência que nos permite enxergar e interpretar o que nos
rodeia. Enquanto elemento significativo da teia social, a memória é também
espaço de conflitos: desperta divergências, paixões, controvérsias, sentimentos
e ressentimentos. Traz à tona lembranças, desencobre dores, expõe o que muitos
prefeririam deixar na escuridão... É matéria-prima para pensar a história – a
nossa e a do mundo.
O
período acima abre um dos capítulos do livro O Terror Renegado, de
Alessandra Gasparotto, e sintetiza o intuito de outras duas obras também
lançadas pelo Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional. O
projeto é um concurso bianual de monografias que publica trabalhos com base em
fontes documentais referentes ao regime autoritário no Brasil. A memória que os
três livros trazem à luz são fatos de um período sombrio que ainda tem muito a
ser revelado, como mostram os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que
completou um ano em 16 de maio.
O
que aconteceu com militantes que foram forçados, por meio de tortura física e
psicológica, a se retratar publicamente, renegando convicções políticas? Ou
ainda: qual era a função, os desdobramentos e a macabra metodologia dos
interrogatórios preliminares feitos nos porões do regime? E quanto à esquecida
atuação dos marinheiros contrários a ditadura e, depois, pela anistia? São
essas as memórias reveladas em O Terror Renegado e também em No Centro da Engrenagem,
de Mariana Joffily, e Todo o Leme a Bombordo, de Anderson da Silva
Almeida.
Os
“arrependimentos” de que trata Alessandra Gasparotto não podem ser considerados
pelo sentido que a palavra tem no dicionário, já que não foi espontaneamente
que a maioria dos cerca de 30 militantes apresentaram seus depoimentos que
renegavam seus ideais e exaltavam o regime. Ao contrário. As retratações
apresentadas em gravações, entrevistas e em cartas foram, em geral, conseguidas
por meio de tortura.
“A
história e a memória desses ‘arrependidos’ nos remetem a questões centrais da
história brasileira contemporânea, tanto daqueles tempos de ditadura quanto de
nossa época atual. Suas experiências evidenciam práticas nefastas da propangada
oficial e da ação psicológica do regime, assim como a colaboração e a
participação das principais empresas de comunicação em tais estratégias”,
relata a autora. “É importante resgatar essas memórias porque, primeiro,
durante muito tempo elas ficaram esquecidas. Não fazem parte nem da memória
‘oficial’ da ditadura, nem da memória de esquerda, porque esses militantes
ficaram muito marcados como traidores”, completa Alessandra, professora do
Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas (RS).
Triagem
No Centro da Engrenagem,
originalmente elaborado por Mariana Joffily para sua tese de doutorado em História Social,
na Universidade de São Paulo (USP), resgata interrogatórios feitos de 1969 a 1975 na Operação
Bandeirante (Oban) e no Destacamento de Operações de Informações do Centro de
Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Ela vasculhou o Arquivo Público do
Estado de São Paulo para entender como eram realizados, a função e os
desdobramentos dos interrogatórios preliminares feitos com os acusados de
subversão antes de a prisão ser considerada formal.
“Uma
das coisas que eu analiso é como no jogo das palavras do interrogado você
encontra expressões que são típicas da repressão política. Tem um momento, por
exemplo, em que o depoente diz que nunca teve contato com ‘esse famigerado
terrorista’, expressão que dificilmente teria saído da boca do militante. Parece
muito mais uma expressão dos interrogadores! Tentei entender tanto as
estratégias de um, para obter as informações, como de outro, para omitir ou
enganar a repressão”, conta Mariana. O processamento das informações e as
sucessivas reinquirições e acareações não eram feitos apenas na busca pelos
fatos reais, mas também como uma forma de obrigar o interrogado a conformar-se
com as conclusões tiradas pelos interrogadores.
Apesar
de o uso da tortura ser conhecido nessas operações, há, no máximo, indícios do
que pode ter acontecido. “O que você encontra, às vezes, é que a sessão foi
interrompida porque a pessoa começou a passar mal ou ficou numa situação em que
não conseguia dizer nada. Mas não tem nada explicando por que ela chegou a esse
estado. O que eu fiz foi cruzar essa documentação com a do projeto Brasil Nunca
Mais, que tem as denúncias nos processos do Superior Tribunal Militar das
torturas sofridas pelos presos políticos. Em alguns casos, consegui pegar o
mesmo cara que foi preso e torturado no DOI-Codi que depois, na fase judicial,
denunciou a tortura, e eu cruzo a informação”, afirma.
Ao
ler a bibliografia do golpe de 1964, Anderson da Silva Almeida – que entrou em
1996 na Escola de Aprendizes-Marinheiros de Pernambuco – percebeu que eram
recorrentes as menções sobre a rebelião dos marinheiros que ajudou a
desencadear a queda do presidente João Goulart. O rapaz decidiu ir a fundo para
entender essa história, e assim nasceu seu livro Todo o Leme a Bombordo,
dissertação de mestrado em
História Social na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Aqui também as águas são turvas e agitadas
e estão repletas de fatos escondidos no fundo desse mar. “Percebi que se falava
muito sobre a rebelião dos marinheiros de 1964, sobre o cabo Anselmo, e percebi
o silêncio da Marinha sobre isso. Eu tinha fontes que diziam que existiam
marinheiros nos movimentos de luta armada, entre os mortos e desaparecidos
políticos, nos livros de memória encontro marinheiros no exílio... E a pouca
bibliografia que tinha sobre isso só falava sobre o momento da rebelião e os
dias que antecederam a queda de Jango. Depois, eles sumiam dos livros”, relata.
O pesquisador resgatou parte da história do
cara que anos antes vira na TV, José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, um dos
líderes do movimento revoltoso e controverso personagem que mudou de lado e
passou a agente do governo. Mas ele não é a vedete do livro. São, sim, os
militares de baixa patente que atuaram politicamente nos anos que precederam o
golpe e tudo o que aconteceu com eles depois: o esquecimento e a anistia
tardia.
“Trata-se de um segmento social vindo das
classes baixas. Ainda hoje é assim. E, por uma questão principalmente de
classe, ficou muito forte na historiografia e na academia a presença da geração
de 1968 formada, sobretudo, por estudantes e jovens da classe média. Os
marinheiros não apareciam tanto, por mais que estivessem sempre lá, na luta
armada, no exílio e no debate da anistia”, opina.
Daí emergem histórias como a de José Xavier
Cortez, que, expulso da Marinha por ter participado da rebelião, mudou-se para
São Paulo e começou a trabalhar e morar em um estacionamento perto da
Pontifícia Universidade Católica (PUC). De lavador de carros a estudante
bolsista naquela universidade, foi uma questão de tempo. Anos mais tarde,
Cortez lançaria uma editora que leva seu sobrenome.
Anderson ressalta a importância da chegada
de livros como esses ao mercado. “Que a sociedade como um todo – e não só a academia
e as pessoas que estão envolvidas diretamente no debate político – discuta,
aprenda e apreenda o que aconteceu no passado recente do Brasil. Afinal, ainda
temos vestígios do período ditatorial nas polícias militares, nas instituições,
nas escolas.”