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Globo divulgou nota de arrependimento por ter apoiado o golpe militar de 1964 (Reprodução) |
A Globo foi e é parte diretamente
interessada no assalto ao poder que interrompeu a democracia brasileira
em março de 1964. Não se trata de um fato isolado, como tenta edulcorar a
nota divulgada
Não se sabe ainda se há relação de causalidade entre uma coisa e outra.
O fato é que manifestantes do Levante Popular guarneceram a sede da Globo em SP, neste sábado (31), com fezes.
A retribuição, em espécie, dizem os integrantes do protesto, remete ao
conteúdo despejado diuturnamente pela emissora nos corações e mentes da
cidadania brasileira.
Apenas algumas horas depois, uma nota postada no site do jornal ‘O Globo’
manifestava o arrependimento da corporação pelo editorial de 2 de abril
de 1964, de apoio ao golpe que derrubou Jango e instalou, por 21 anos,
uma ditadura militar no país (Leia os dois textos ao final desta nota).
Se a matéria-prima do protesto motivou a purgação é imponderável.
Mas por certo a recíproca é verdadeira.
O fecalismo voador de que foi alvo o edifício-sede das Organizações
Globo na capital paulista é decorrência da ação coesa, contínua, não
raro beligerante, que o maior grupo de mídia do país tem dispensado
contra ideais e forças progressistas do país.
A nota deste sábado é histórica.
Mais pela evidência da mudança na correlação de forças que obriga a
emissora a se desfazer de um legado incomodo, do que pelo arrependimento
que simula.
Na verdade, nem simula direito.
A nota faz malabarismo, tergiversa e mente para justificar o golpe que apoiou ostensivamente.
No fundo, apenas lamenta ter sido tão desabrida, como se não houvesse amanhã.
O amanhã chegou.
Seja na forma de matéria fecal, protestos massivos, redes
alternativas de informação, desqualificação ética, queda de audiência e
desprestígio editorial.
O fato é que há na sociedade um discernimento crescente em relação
aos verdadeiros propósitos e interesses que movem o noticiário, as
campanhas e perseguições movidas pelas Organizações Globo contra
projetos, direitos, governos, lideranças e partidos.
A Globo foi e é parte diretamente interessada no assalto ao poder que interrompeu a democracia brasileira em março de 1964.
Não se trata de um editorial isolado, como tenta edulcorar a nota deste sábado.
São 49 anos de pautas pós-golpe. E décadas de idêntico engajamento pré-64.
Ou terá sido coincidência que, em 24 de agosto de 1954, consternado
com a notícia do suicídio de Vargas, o povo carioca perseguiu e
escorraçou porta-vozes da oposição virulenta ao Presidente; cercou e
depredou a sede da rádio Globo, que saiu do ar?
O mesmo cerco que levaria Vargas ao suicídio, asfixiou Jango, dez anos depois.
Foi da mídia (a Globo na comissão de frente), a iniciativa de
convocar o medo, a desconfiança, o linchamento das reputações que
levariam uma parte da classe média a apoiar o movimento golpista.
Mente a nota ‘arrependida’, ao afirmar, citando Roberto Marinho, em
1984: “os acontecimentos se iniciaram, como reconheceu o marechal Costa e
Silva, ‘por exigência inelutável do povo brasileiro’. Sem povo, não
haveria revolução, mas apenas um ‘pronunciamento’ ou ‘golpe’, com o qual
não estaríamos solidários.”
Quem inoculou o terror anticomunista na população, de forma incessante e sem pejo?
Quem gerou o pânico, a contrapelo dos fatos mostrou um governo isolado e manipulado ‘pelo ouro de Moscou’?
O acervo do Ibope, catalogado pelo Arquivo Edgard Leuenroth, da
Unicamp, reúne pesquisas de opinião pública feitas às vésperas do golpe.
Os dados ali preservados foram cuidadosamente ocultados pela mídia no calor dos acontecimentos e por décadas posteriores.
Agora conhecidos, ganham outro significado quando emoldurados pela atuação do aparato midiático ontem – mas hoje também.
Enquetes levadas às ruas entre os dias 20 e 30 de março de 1964,
quando a democracia já era tangida ao matadouro pelos que bradavam a sua
defesa em manchetes e editoriais, mostram que:
a) 69% dos entrevistados avaliavam o governo Jango como ótimo (15%),
bom (30%) e regular (24%). Apenas 15% o consideravam ruim ou péssimo,
fazendo eco dos jornais.
b) 49,8% cogitavam votar em Jango, caso ele se candidatasse à
reeleição, em 1965 (seu mandato expirava em janeiro de 1966); 41,8%
rejeitavam essa opção.
c) 59% apoiavam as medidas anunciadas pelo Presidente na famosa sexta-feira, 13 de março.
Em um comício que reuniu, então, 150 mil pessoas na Central do Brasil
(o país tinha 72 milhões de habitantes) Jango assinou decretos que
expropriavam as terras às margens das rodovias, para fins de reforma
agrária; e nacionalizou refinarias de petróleo.
As pesquisas sigilosas do Ibope formam apenas o arremate estatístico
de um jornalismo que ocultou – e oculta – elementos da equação política;
convocou, exortou, manipulou, incentivou e apoiou a derrubada violenta
do Presidência da República, em 31 de março de 1964.
O editorial ‘O Renascimento da Democracia’, de que se arrepende a
empresa ora guarnecida com resíduo fecal, não foi um ponto fora da
curva. Mas seu desdobramento natural.
Não se deduza disso que a democracia brasileira vivia então mergulhada na paz de um lago suíço.
Num certo sentido, vivia-se, como agora, o esgotamento de um ciclo e o difícil parto do novo.
Uma parte da sociedade – majoritária, vê-se agora pelos dados
escondidos no acervo do Ibope – considerava no mínimo pertinente o
roteiro de soluções proposto pelas forças progressistas aglutinadas em
torno do governo Jango.
As reformas de base – a agrária, a urbana, a fiscal, a educacional —
visavam destravar potencialidades e recursos de um sistema econômico
exaurido.
Jango pretendia associar a isso um salto de cidadania e justiça social.
O que importa reter aqui, como traço de atualidade inescapável, é o
comportamento extremado do aparato midiático diante desse projeto.
Convocada a democracia e a sociedade a discutir o passo seguinte da
história brasileira, os campeões da legalidade de ontem e de hoje
optaram pelo golpe.
Deram ao escrutínio popular um atestado de incompetência política
para formar os grandes consensos indispensáveis à emergência de um novo
ciclo de desenvolvimento com maior justiça social.
Não há revanchismo nesse retrospecto.
Pauta-o a necessidade imperativa de dotar a democracia brasileira das
salvaguardas de pluralidade midiática e participação social que a
preservem da intolerância conservadora.
Aquela que em 54 matou Getúlio.
Em 1964, negou à sociedade a competência para decidir o seu destino.
Em 2002 fez terrorismo contra Lula.
Em 2005 tentou derrubá-lo e impedir a sua reeleição em 2006.
E assim se sucede desde 2010, contra Dilma.
A exemplo do que se assiste agora contra o PT e suas lideranças, ao
mesmo tempo em que se exacerba a gravidade dos desafios econômicos na
manipulação das expectativas dos mercados.
Veiculado pela família Marinho dois dias depois do golpe, o editorial do Globo, não foi um ponto fora da curva.
Ele consagra um método.
Que a experiência recente não pode dizer que caiu em desuso
Mas que vive um ponto de saturação.
Ilustra-o a necessidade de mostrar arrependimento.
Bem como o sugestivo odor exalado das paredes da sede da Globo em São Paulo.
Saul Leblon, blog das frases