Num derrocado segundo domingo de maio — ao que muitos homens
sóbrios haveriam de condenar nada mais significava senão uma baita
oportunidade anual para que o comércio varejista incrementasse o seu
faturamento em vendas — um bando de mulheres abatidas de olhares
paralíticos, adentradas na maturidade, reúne-se num galpão qualquer, de
endereço desconhecido, deprimente e mal ventilado, que bem poderia se
tratar de uma fábrica falida, uma escola abandonada, uma igrejinha
rejeitada pelos fiéis, ou uma reles locação fantasiosa de um inventor de
estórias.
Sentadas em semicírculo, feito um conclave de bruxas aposentadas, a
facção de velhotas amarguradas prossegue sua resenha triste, em que cada
uma das desatinadas ali presentes garimpa nos dicionários e nos livros
santos disponíveis quais sejam os adjetivos mais adequados para
descreverem, com os mister do amor infinito e da compaixão materna, os
vieses dos perfis notoriamente deploráveis dos seus descendentes:
crápulas a serviço do crime e da maldade.
Elas formam um grupo peculiar, uma legião inédita composta, única e
exclusivamente, por senhoras de coração partido, um lote de mães
profundamente afetadas pela malquerença, maledicência ou mau
comportamento dos filhos para com terceiros, criaturas estas
consideradas intocáveis, porquanto estivessem várias delas trancafiadas,
ou mortas, ou desaparecidas, ou viajando pelo Caribe a rirem da cara da
justiça brasileira e dos contribuintes bobalhões (neste último caso,
delinquentes endinheirados em rota de fuga pelo mundo).
Aquela renca de mulheres envergadas, por mais incrível que possa
parecer, encontra-se incapacitada para o choro, mas, não para as
lástimas (quem não se compadeceria das lamúrias de uma mãe combalida?).
Porque, chega uma hora, até lágrima de mãe seca, ao contrário da
esperança.
No caso delas, as mães, a esperança não é a última que morre, pois o
amor que elas nutrem pelos rebentos, ainda que sejam elas facínoras
incorrigíveis, é imensurável, incondicional, termina nunca. Uma mãe com
pedigree assemelha-se a uma cadela parida: rosna, não larga as crias na
chapada, aguenta o tranco, desafia últimas consequências.
Continuando a descrição daquele antro decadente: não há barulho que
se ouça no estabelecimento, senão o som dos espetos de sol rasgando uma
emblemática manhã de domingo, aquecendo aquele amontoado de carcaças
lamurientas em que o café da manhã festivo fora substituído pelo fel das
palavras; e o pão-nosso-de-cada-dia trocado pelo pão que o próprio
diabo amassou.
Nada mais injusto. A vida é várias e várias vezes assim:
injusta. Mãe suporta tudo, até aquele desjejum de más notícias.
Uma senhora magérrima, anorética com fome de justiça, e que parecia
morta durante todo o tempo que permanecera imóvel sobre a cadeira,
tamanho era o seu abatimento, reclamou da polícia, da violência da
polícia, da falta de coração por parte da polícia, do excesso de balas
da polícia que trucidaram o seu filho caçula durante uma perseguição
implacável pelos becos da favela, um corre-corre dos diabos que faria
qualquer diretor de filmes de ação parecer uma noviça.
Basta uma matrona falar que todas já se sentem confiantes o
suficiente para emendarem na resenha, capricharem no desabafo,
descarregarem os seus testemunhos de sofrimento e dor ao relatarem as
agruras sofridas pelos rebentos, ovelhas negras desgarradas do bando,
crápulas desmemoriados de que um dia foram expelidos pela vagina de uma
mulher. De tal sorte que a saraivada de sórdidos relatos logo aqueceu
aqueles frágeis corações espatifados reunidos num semicírculo.
Mais bem vestida que a maior parte das genitoras daquela malta à
beira da falência, uma gorducha de bochechas rosadas e cheiro agradável
reclamou à beça de uma tal “imprensa marrom” que, não somente denunciou o
seu filho como criminoso do colarinho branco, mas o julgou no decorrer
das últimas semanas e o condenou ao “fazer a cabeça” da opinião pública.
Mesmo dentro daquela confraria invulgar houve muita resistência das
mamães colegas em crer que vultosas heranças familiares servissem de
justificativa para tamanho enriquecimento ilícito. Pouquíssimos toleram
os carniceiros da corrupção: só as amantes (por puro interesse) e as
mães (por puro desinteresse), como aquela balzaquiana avexada.
Alguém levantou para o alto um espeto de couro e osso chamado “dedo” e
pediu a palavra para reivindicar das autoridades competentes um
tratamento mais digno e promissor para o filho, uma avaliação isenta
encampada pelos ilibados estudiosos da mente humana, ainda que fosse uma
equipe formada só por cientistas estrangeiros (o que, supostamente,
teria mais credibilidade), a fim de explicarem a predileção sexual do
seu filho por crianças de colo.
“O menino é bom, mas tem desvio”, foi o
que ela mensurou, testando o grupo, ao que ninguém manifestou-se,
tamanho o asco sentido.
Outra pobre coitada isentou o filho alcoólatra de qualquer
responsabilidade pelos hematomas e escoriações no seu corpo, o dente
incisivo partido ao meio e aquelas hastes metálicas espetadas na sua
canela para firmarem o osso. “É que o sujeito se transforma quando toma
umas e outras”, ela geme. “No fundo, no fundo, ele é uma moça incapaz de
fazer mal a uma mosca”.
Aliás, havia um enxame de moscas verdes metálicas sobrevoando aquelas
conversas deterioradas. Elas eram incapazes de parir novos assuntos.
Ultimamente, nada mais condizente e reconfortante lhes restava fazer
senão se reunirem num domingo festivo em tributo às mães para se
refugiarem daqueles descalabros: uma mãe de coração partido sustentando o
dramalhão da outra mãe de coração partido, numa espécie de sucursal das
“AA” (Amarguradas Anônimas), uma cena dificílima de descrever só numa
crônica.
Eberth Vêncio, Revista Bula
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