Segunda-feira. O sujeito acorda
atrasado às sete horas da manhã. Levanta-se às pressas, segue tropeçando
até o chuveiro, lava rápida e porcamente suas vergonhas, se veste mal e
segue acelerado para o trabalho, enquanto lamenta mais uma vez não ter
sido sorteado na mega-sena do final de semana.
No trânsito, ele não dá passagem aos motoristas das faixas ao lado,
avança contra pedestres, buzina ameaçador para os motoqueiros que o
ultrapassam por todos os lados — por cima, por baixo, por dentro — e
deseja a morte sofrida de todos que saíram de casa só para impedi-lo de
correr mais rápido na avenida congestionada.
Ele chega ao trabalho e não responde a nenhum “bom dia” no elevador,
reclama em voz alta da moça da faxina que mudou a posição de seu teclado
dois centímetros para o lado na hora da limpeza, liga o computador,
entra em seu perfil no facebook e digita:
“Uma semana de paz e amor a todos. Que Deus ilumine seus corações e encha seus caminhos de alegrias. Bom dia, planeta face!”
O dia é produtivo. Ele puxa o tapete de seus colegas, pressiona
fornecedores, chantageia a ex-mulher, esculhamba em pensamento a Deus e
aos 12 apóstolos. Porque já provou ao universo que é “do bem” e, afinal,
quem é “do bem” pode odiar o mundo em paz. Mas precisa ser em silêncio.
Você sabe, algumas coisas a gente não pode tornar públicas, sobretudo
aquelas que a gente realmente sente. Então, é melhor dizer sobre você
apenas aquilo que o mundo vá curtir e compartilhar.
Então cai do céu a migalha mais gorda de felicidade em seu dia: a
hora do almoço. No restaurante por quilo, com os colegas “da firma” ele
engole apressado seu arroz, feijão e carne de todos os dias. A moça ao
lado fotografa o próprio prato. Ele conta um monte de mentiras sobre seu
final de semana. Ninguém ouve. Ninguém tira os olhos do celular, o wifi
daqui funciona bem, cala a boca e aproveita.
O almoço termina e é hora de dar um passeio. Fazer a digestão. Não na
praça, não há mais praças. Ali mesmo, à mesa. É tempo de passear os
olhos por sua “linha do tempo”. Cachorro perdido, gente desaparecida,
cachoeira, pôr do sol, frase feita, cerveja na praia, piada velha,
indireta para ex-namorado, fulana mudou foto do perfil, pose com celular
no espelho, Clarice Lispector, Mussum, cachorro desaparecido, gente
perdida, “diga não ao preconceito” aqui, “mais amor, por favor” ali,
“todos contra a homofobia” acolá.
Ele curte tudo e compartilha, arrotando alho e satisfação. Agora o
mundo sabe o quanto está diante de um sujeito bacana, querido, amoroso,
crítico, inteligente, sagaz. Tão esperto que foi o primeiro a perceber
uma aberração: todos os seus colegas de mesa estavam se transformando em
jacarés. E eram jacarés enormes, cinza-esverdeados, arregalando os
olhos vermelhos em sua direção.
Antes que ele consiga gritar de pânico, um dos jacarés abocanha sua
cabeça e o arrasta para o fundo do lago verde e viscoso em que tudo de
repente se converteu. Lá nas profundezas, naquela região em que as
máscaras caem e à qual ninguém costuma descer — porque só na superfície
podemos ser perfeitos — todos os jacarés se masturbam em público, cagam
nas esquinas e jogam merda em quem passa, limpam o popô com ouriços,
apontam suas unhas e suas caudas uns contra os outros, ferem, matam e
falam com a boca cheia.
Lá no fundo, a intolerância nada pelada. Lá, o
mais justo sacerdote se transforma num flagrante cretino, a mais
tradicional família perfeitinha se torna um pavoroso esquadrão da morte.
Lá, somos todos jacarés e a tolerância é o escambau.
Gritando, se contorcendo e tentando se libertar do monstro que o
agarrara, ele percebe que também se transformou num jacaré. Tenta
respirar como gente e não consegue. Ele agora é um maldito réptil, e
precisa aprender a respirar como tal. Sem sucesso, se desespera, se
machuca, debate seu corpanzil bizarro e tenta voltar à superfície. Um
som de sirene explode em seu sentido auditivo de réptil.
“Protocolo 28!
Protocolo 28!”, grita alguém a seu lado. Então um grupo de superjacarés o
imobiliza e se põe a fazer cócegas em sua barriga. Aos poucos, o
desespero vai desaparecendo, rareando, até finalmente sua carcaça e sua
alma serem tomadas por um estranho torpor. Tudo agora ao seu redor é
calma. Lá no fundo, somos todos jacarés.
Na superfície, no restaurante por quilo onde ele almoçava todos os dias, seu corpo aguarda no chão.
“Ele está morto”, declara o paramédico. Infarto fulminante.
Nenhum de seus colegas do trabalho espera a chegada do rabecão do IML.
A moça ao lado, aquela que fotografava o próprio prato no começo do almoço, olha chocada o corpo sem vida:
— E nem fechou o facebook.
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